(CONTRIBUIÇÃO Profª RUBIA)
AS MÃOS QUE LIAM
Minhas
amiguinhas (...) tinham uma novidade para me contar:
–
Enquanto você estava doente, apareceu na aldeia uma moça que sabe ler as
palavras com a ponta dos dedos.
–
Como? – perguntei incrédula e, ao mesmo tempo, desapontada por não ter sido a
primeira a descobrir o fato.
– É
isso mesmo. Ela lê com as mãos. Todas as terças-feiras ela vai à igreja para
contar a História Sagrada para as crianças do catecismo. Você quer ir?
Na
terça-feira, fomos em bando até a igreja e nos sentamos nos primeiros bancos.
Ali fiquei eu, com o coração ansioso, à espera da moça que recolhia as palavras
com as mãos, como se fossem frutos maduros das árvores.
De
súbito, ela entrou. Caminhava devagarinho pelo corredor, apoiada em uma bengala
(...). E, quando se aproximou do altar, fez o sinal da cruz, sentando-se à nossa
frente. Tinha uma expressão bondosa, mas distante, posta no vazio. Olhava-nos,
mas não nos via.
Abrindo
um enorme livro, realizou o milagre. Eu a vi, então, tocando com os dedos as
folhas brancas, inteiramente brancas, sem nenhuma palavra desenhada, só com
alguns pontinhos em relevo, como cabeças de alfinete. Ela decifrava o papel com
as mãos assim como eu decifrava com os olhos os livros do meu avô astrônomo.
E foi
para esse avô que eu fui contar correndo a novidade. Ele, porém, não se
espantou. Era um homem que lia muito, que sabia muito, embora nunca saísse da
aldeia. Ele viajava nos livros. (Será que também lia com os dedos, quando
ninguém estava vendo?...)
–
Fortunatella, como essa moça é cega, aprendeu a ler de maneira diferente das
pessoas que podem enxergar. Cada monte de pontinhos daqueles é uma letra. E uma
reunião de pontinhos é uma palavra. Caminhando com os dedos sobre esses
montinhos, ela vai decifrando as frases.
Eu
estava perplexa:
– E
quem ensinou essa moça a ler desse jeito?
– Não
sei, Fortunatella, não sei. Na aldeia, isso é novidade. Mas quem inventou esse
jeito de ler foi um cego que morreu na França há mais ou menos quarenta anos.
Quarenta
anos era uma eternidade, que eu nem sabia calcular. E a França devia ser um
reino encantado onde as pessoas – que maravilha! – aprendiam a ler sem
enxergar.
– Vovô
Leone, eu também quero ler com as mãos. É mais bonito do que com os olhos!
– Não
diga isso, Fortunatella. Enxergar é uma bênção. Mas, se você quiser, pode
aprender a ler o mundo com os dedos, sim. Você tem tato: toque, apalpe, sinta.
Fiquei
olhando vovô Leone, admirada da sua sabedoria. E fui tentando, nos dias que se
seguiram, apalpar as coisas que estavam na minha frente. Era uma nova
brincadeira: fechava os olhos e tateava. E assim fui aprendendo a conhecer a
lisura de uma folha de papel, as nervuras de uma folha de árvore, o calor de
uma cinza da lareira, o veludoso da pele do meu rosto, o fofo do miolo do pão,
a aspereza de uma pedra da rua, a fluidez da água da fonte.
LAURITO,
Ilka Brunhilde. A menina que fez a América. São Paulo: FTD, 1987.
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