terça-feira, 26 de maio de 2020

Reflexão sobre a importância da leitura, não importa como ela acontece, o que importa é o que a leitura desperta em você.


(CONTRIBUIÇÃO Profª RUBIA)

AS MÃOS QUE LIAM

Minhas amiguinhas (...) tinham uma novidade para me contar:
– Enquanto você estava doente, apareceu na aldeia uma moça que sabe ler as palavras com a ponta dos dedos.
– Como? – perguntei incrédula e, ao mesmo tempo, desapontada por não ter sido a primeira a descobrir o fato.
– É isso mesmo. Ela lê com as mãos. Todas as terças-feiras ela vai à igreja para contar a História Sagrada para as crianças do catecismo. Você quer ir?
Na terça-feira, fomos em bando até a igreja e nos sentamos nos primeiros bancos. Ali fiquei eu, com o coração ansioso, à espera da moça que recolhia as palavras com as mãos, como se fossem frutos maduros das árvores.
De súbito, ela entrou. Caminhava devagarinho pelo corredor, apoiada em uma bengala (...). E, quando se aproximou do altar, fez o sinal da cruz, sentando-se à nossa frente. Tinha uma expressão bondosa, mas distante, posta no vazio. Olhava-nos, mas não nos via.
Abrindo um enorme livro, realizou o milagre. Eu a vi, então, tocando com os dedos as folhas brancas, inteiramente brancas, sem nenhuma palavra desenhada, só com alguns pontinhos em relevo, como cabeças de alfinete. Ela decifrava o papel com as mãos assim como eu decifrava com os olhos os livros do meu avô astrônomo.
E foi para esse avô que eu fui contar correndo a novidade. Ele, porém, não se espantou. Era um homem que lia muito, que sabia muito, embora nunca saísse da aldeia. Ele viajava nos livros. (Será que também lia com os dedos, quando ninguém estava vendo?...)
– Fortunatella, como essa moça é cega, aprendeu a ler de maneira diferente das pessoas que podem enxergar. Cada monte de pontinhos daqueles é uma letra. E uma reunião de pontinhos é uma palavra. Caminhando com os dedos sobre esses montinhos, ela vai decifrando as frases.
Eu estava perplexa:
–  E quem ensinou essa moça a ler desse jeito?
– Não sei, Fortunatella, não sei. Na aldeia, isso é novidade. Mas quem inventou esse jeito de ler foi um cego que morreu na França há mais ou menos quarenta anos.
Quarenta anos era uma eternidade, que eu nem sabia calcular. E a França devia ser um reino encantado onde as pessoas – que maravilha! – aprendiam a ler sem enxergar.
– Vovô Leone, eu também quero ler com as mãos. É mais bonito do que com os olhos!
– Não diga isso, Fortunatella. Enxergar é uma bênção. Mas, se você quiser, pode aprender a ler o mundo com os dedos, sim. Você tem tato: toque, apalpe, sinta.
Fiquei olhando vovô Leone, admirada da sua sabedoria. E fui tentando, nos dias que se seguiram, apalpar as coisas que estavam na minha frente. Era uma nova brincadeira: fechava os olhos e tateava. E assim fui aprendendo a conhecer a lisura de uma folha de papel, as nervuras de uma folha de árvore, o calor de uma cinza da lareira, o veludoso da pele do meu rosto, o fofo do miolo do pão, a aspereza de uma pedra da rua, a fluidez da água da fonte.
LAURITO, Ilka Brunhilde. A menina que fez a América. São Paulo: FTD, 1987.


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